No começo de junho, a morte do jornalista – mais que isso, amigo – José Luiz Lima completou dez anos. Em abril ele teria feito setenta, e morreu de um infarto fulminante dois meses depois de vangloriar-se por ser o primeiro homem de sua família a chegar aos sessenta. Convivi com ele desde os longínquos tempos da faculdade e tive a honra de ser convidado a ser seu padrinho de casamento. Por ser metódico e encarar suas fraquezas (hipertensão e diabetes) com o devido respeito, sua partida pegou todo mundo de surpresa.

Embora nunca seja o suficiente para representar tudo o que alguém representou em nossa vida, em 12 de junho de 2011, publiquei o seguinte texto em meu antigo blog ‘Fala, Zanfra!’:

Pela janela do avião eu vi o sol nascendo sobre as nuvens, lá longe no horizonte, e me passou rapidamente pela cabeça que esse era um espetáculo que José Luiz não poderia mais apreciar. Foi um pensamento pouco original, reconheço. Mas que espécie de originalidade é possível esperar quando se está a caminho do enterro de um amigo que fazia parte de sua vida havia 37 anos? Aliás, o que é a morte senão um grande, escuro e desconhecido lugar-comum?

Saí de Florianópolis no voo das 6h05 e, ao contrário do que prenunciava o nascer do sol que vira pouco antes, encontrei uma São Paulo cinzenta, à beira de uma chuva intermitente que não demorou meia hora para começar a cair. Havia sido informado do falecimento pouco depois da meia-noite e àquela hora da manhã, depois da noite insone e da viagem rápida, chegava a Congonhas tomado pela perplexidade natural de quem perde um ente querido. É sempre difícil entender a morte, mais difícil ainda aceitá-la.

Acho que é por isso que a ficha demora a cair: você mesmo, inconscientemente, não quer que ela caia. Você mesmo evita assumir a informação de que aquela pessoa que esteve presente em sua vida durante tanto tempo não vai mais estar presente a partir de agora. Ela não vai mais escolher as roupas no armário todas as manhãs, não vai mais comprar pão na padaria para o lanche de domingo, não vai mais emprestar o ombro amigo ou fazer o comentário irônico e inteligente que foi sua marca registrada durante os 37 anos de convivência.

Sua escova de dente perdeu a utilidade, seus sapatos só vão voltar a bater pernas se doados a outros pés. A lembrança fica, mas os bens físicos – e meus poucos, mas condescendentes leitores hão de perdoar-me se não consigo abandonar o lugar-comum – devem buscar a reciclagem, porque a vida continua.

Conheci José Luiz Lima ainda no primeiro dia de aula de nosso curso de jornalismo na Cásper Líbero, em agosto de 1974. Estranhei a princípio quando aquele baixinho quase sem pescoço escolheu sentar-se ao meu lado, numa sala cheia de cadeiras desocupadas, mas entendi depois que ele precisava de alguém para encarar com ele a perspectiva do trote acadêmico, e esse alguém – o primeiro que ele encontrou na sala vazia – eventualmente era eu, um garotão de 18 anos com os olhos tão cheios de expectativas quanto os dele.

José Luiz tinha acabado de completar 60 anos quando morreu. Encontrei-o pela última vez no lançamento de meu livro, em 31 de março, três dias antes de seu aniversário, e escrevi na dedicatória: “Ao ‘sexagenário’ Zé Luiz, um abraço com 37 anos de amizade.” Nosso abraço nesse dia está registrado na foto que ilustra esta postagem. Foi nosso último abraço.

Poderia ser mais forte, mais caloroso, se a gente soubesse que seria o último? Acho que não. A gente nunca dá um último abraço num amigo, porque a gente nunca vai acreditar que os nossos amigos também têm a capacidade insensata de não viver para sempre.

Marco Antonio Zanfra

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