Terraplane-se você também!

Aficionado por viagens, não posso ver um pacote turístico a preços módicos, que já vou comprando. Não por acaso, vi outro dia, no Uol, notícia sobre o fretamento de um navio para um cruzeiro rumo aos confins da Terra Plana. Organizada pela Conferência Internacional da Terra Plana (Feic), a viagem tem por objetivo mostrar que o nosso planeta não passa de uma imensa mesa de bilhar, coberta por uma espécie de abóboda. Claro que não concordo com nada disso, mas é impossível ignorar (e ao mesmo tempo lamentar) os 11 milhões de brasileiros (7% da população) que acreditam piamente nessa teoria, segundo pesquisa recente. Compulsivo, liguei logo para a Feic para saber o preço das passagens e obter mais informações sobre o evento. Além de engraçada, a proposta aguçou minha curiosidade jornalística: fiquei doido pra saber onde (e como) essa loucura iria terminar.

Muito solícito, o atendente teceu uma longa explanação sobre o terraplanismo e a proposta da viagem. Como é sabido, disse ele, desde a Antiguidade, a nossa Terra termina num muro de gelo a nos separar do espaço exterior. Para ratificar sua explanação, prometeu me mandar via WhatsApp algumas fotos, que descobri mais tarde, serem dos glaciares do extremo sul do Atlântico, cujos blocos de gelo se soltam em consequência do aquecimento global. Desculpem, global não, linear. Perguntei se eles me davam garantias de que chegaríamos até o tal muro, mas ele desconversou. Alécio, este o nome do operador, perguntou-me se eu não gostaria de desfrutar de uma viagem magnífica, al ém de ter algumas “evidências” da planitude do nosso planeta. Disse também que o navio teria ótimos restaurantes, bares, danceterias e até piscinas com ondas para a prática do surfe.

Provocador, perguntei ao agente se ele sabia que a palavra planeta vem do grego planétes, que significa viajante, errante, um astro sem luz própria a vagar em torno de seu sol. Explicou-me que o termo estava mal-empregado, pois neste caso, o sol é que gira ao nosso redor. Não é fantástico? Levei um susto, enquanto o rapaz, do outro lado da linha, empolgado, trazia mais detalhes sobre o cruzeiro. Contou que navegaríamos à beira de um precipício (não era um muro?) – já pensou se o comandante faz uma barbeiragem qualquer e a gente cai de lá, pensei.  

Indago sobre o preço das cabinas, externas claro, eu é que não vou perder a oportunidade de tirar fotos dos confins da Terra Plana. Ainda não tinham o preço estipulado. Por favor, me informem o mais rápido possível, quando precificarem o passeio, solicitei, enquanto fazia meu cadastro. Desligo o telefone e me ponho a delirar. Já pensaram passar dias, semanas, a bordo de uma embarcação cheia de terraplanistas de carteirinha? Homens, mulheres, o que fazem? Como chegaram até aqui? Como procriam?

Imaginem as festas e resenhas com esses sujeitos o dia inteiro, do nascer ao pôr do sol, ops, eu disse “pôr do sol”? Isso não existe neste caso. Aquele espetáculo do nosso astro-rei, tal qual uma bola de futebol gigante avermelhada, a despencar na linha do horizonte, é inimaginável para esse povo. O sol não nasce e não se põe mais, talkey? No nosso cruzeiro, à medida em que nos afastamos, o sol pregado na abóboda celeste se encolhe, primeiro, a bola de futebol, depois a bola de bilhar até chegar a uma bolinha de pingue pongue. De manhã, a mesma coisa, bolinha, bola média, bolona.  
 
Entusiasmado, e quase convencido pelo Alécio, liguei para meu velho amigo, o ex-capitão naval Henk Keijer, para falar do evento, mas a conversa me deixou meio frustrado. A deduzir de suas palavras, conclui que o cruzeiro é tecnicamente inviável. Do alto de sua experiência, ele explica que todas as cartas náuticas e sistemas de navegação foram desenvolvidos para uma Terra esférica. E que o próprio GPS usado pelos navegadores comprova que o planeta é redondo, pois se baseia em 24 satélites que o orbitam. Se a Terra fosse de fato plana, três satélites bastariam.

O balde de água fria veio quando Keijer disse que seria difícil até arrumar uma tripulação para o navio. Depois de mais de 2 milhões de milhas navegados, em mais de 23 anos de carreira, ele não encontrou um só comandante de navio que acreditasse na teoria da Terra plana. Pô, Henk, você é um tremendo de um desmancha-prazeres! Já estava me acostumando com a teoria da Terra Plana, a devanear com a viagem, e vem você fazer uma terraplenagem (ou seria terraplanagem?) nos meus sonhos!?

Manoel Dorneles

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