Quando você não se despede

Meu pai se aposentou aos 50 anos, depois de 30 de trabalho no Banco do Estado de São Paulo, o antigo Banespa, comprado pelo Santander, em 2000. Na década de 70, aposentar-se cedo ainda era possível… 

Sonhava comprar um sítio no interior e viajar para muitos lugares, com minha mãe. Só que, logo após a aposentadoria, ficou doente. Os médicos, de todos os tipos e especialidades, pediram uma dezena de exames, alguns extremamente dolorosos. Eu o acompanhei muitas vezes e, de dentro do carro, chorava, ao ouvir seus gritos. 

Tinha menos de 70 quilos e, mais de um ano depois, quando, finalmente, descobriram o que havia de errado, estava com 39 e já debilitado. Acometido de pancreatite, hoje curável até com dieta, teve de operar. Não, ele não era alcoólatra; apenas, passou dez anos se alimentando mal, principalmente com sanduíches. 

A operação foi bem-sucedida, mas ele nunca mais conseguiu se recuperar. Morreu em 2 de novembro de 1977, depois de mais umas três ou quatro cirurgias, por causa da peritonite, já que o organismo dele não tinha mais resistência para combater a infecção. 

Minha carreira jornalística, que tinha começado na Revisão da Folha, acabara de me levar à Redação da Folha da Tarde (hoje, Agora São Paulo). Nem cheguei a lhe contar isso, mas ele adivinhou, quando falei que tinha uma boa notícia para dar… 

Da última vez que foi internado, em 1º de novembro, covardemente, aleguei ter de ir até o jornal, para avisar que não trabalharia naquele dia. Sim, podia ter apenas telefonado. Na verdade, só queria fugir do hospital. 

Na hora de levá-lo para o centro cirúrgico, o médico permitiu que minha mãe e meus irmãos o vissem. E eu não estava lá, para dizer o quanto o amava… 

Passados quase 45 anos, ainda me dói o fato de não me despedir dele. 

Há mais de um ano e cinco meses, quase 550 mil famílias não puderam se despedir dos seus entes queridos nem dizer o quanto foram amados. Em mim, vive a dor insuportável de cada uma delas, uma dor que nunca acabará. 

Lamento que tantos passam por isso. Não há palavras de consolo que façam sentido, em momentos assim. 

Célia Bretas Tahan

9 comentários

  1. Emocionante mesmo. Tb perdi meu pai cedo, ele tinha 65 anos. O que o levou foi a Doença de Chagas, com que conviveu desde a infância. Lembro que o vi meia hora antes no Dante Pazzanezi, ele estava com sede e o médico só autorizou que molhassemos um guardanapo e pusessemos na boca dele. Até hoje não me conformo de não ter ali um copo de cerveja de que ele tanto gostava, para lhe dar

  2. Sei como se sentiu, Dorneles. Meu pai adorava aquele queijo de cabra árabe e queria muito que ele pudesse ter comido um, antes de ir embora.

  3. Parabéns Célia , entre vários textos já criado por você , esse relato e o mais consistente , como uma herdeira plena de Cora Coralina

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