O som (ensurdecedor) do silêncio

No livro Antes do nascer do mundo, do moçambicano Mia Couto, o menino Mwanito fala de si: “Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhando, de alma e corpo ocupado: tecia delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.” Me identifico em muito com o autor, mas em nada com o simpático e encantador personagem de seu livro. Aliás, no quesito silêncio, quanto mais a vida se vai e menos tempo tenho à minha frente, mais me incomodo com ele. Enquanto muitos buscam pelo silêncio dos mosteiros, túmulos e catedrais, que segundo alguns vale ouro, eu fujo dele como o diabo da cruz. Diria que concordo mais com um dos versos da canção “The sound of silence”, de Simon & Garfunkel, que diz “silence like a cancer grows” (o silêncio cresce como um câncer)”.

Muita gente pode não entender, até criticar, mas sou assim, um ser amante do barulho. Nasci na roça, me acostumei desde pequeno aos sons típicos da zona rural, o mugir de uma vaca, o “tô fraco” da galinha d’angola no terreiro, o murmúrio da cascata, o canto dos pássaros. Na cama, dormia embalado pelo pio da coruja ou de alguma outra ave noturna, o cricrilar do grilo, o cantar do galo, já antecipando o novo dia. Meu pai se levantava muito cedo, para a capina diária e, enquanto preparava o café e o almoço, que levava na marmita, ouvia músicas sertanejas de raiz no rádio. E eu ali na cama, meio acordado, meio dormindo, sono leve, sempre ligadão.

Estamos agora em São Paulo, ali pelos meus oito, nove anos, moramos na Zona Leste, não muito longe de onde passam os trens subúrbios da Central do Brasil. O som aqui é o do apito da locomotiva, o ferro com ferro das rodas sobre os trilhos, o buzinar da carrocinha do padeiro ou do leiteiro, ao amanhecer. Carros ainda são poucos nesta época. Confesso que esse barulhar metropolitano também embala minhas noites insones. E tem mais: minha mãe nunca teve essas frescuras de “deixa o coitadinho dormir”. Vezes sem conta, ela entrava no quarto, acendia a luz, me acordava assim do nada. Dava graças a Deus, quando o fazia só para procurar alguma coisa, pois o mais comum era que me acordasse para dar dura ou porrada, por alguma traquinagem minha. 

Adulto, mudam os endereços, alteram-se os cenários, mas não a minha quase ojeriza ao silêncio, se for absoluto então, é quase uma sentença de morte. Na paulistana Vila Mariana, o som é garantido pelos pássaros do vizinho Ibirapuera, durante o dia, e a noite pelo trânsito infernal; no Tatuapé, além das freadas e buzinas; também tem o atrito das rodas dos trens sobre os trilhos e apitos das locomotivas, das fábricas de tecidos, do amolador de facas. Há uns sete anos, mudei para a Mooca, vizinho dos onipresentes trens, além do sobrevoo de helicópteros e aviões. Meu próximo destino é a cidade de Santos, no Litoral Paulista, não muito distante do porto. Minha trilha sonora já está garantida pelo vai-e-vem das locomotivas, evidentemente, e, também, pelo saudoso e dolente apito dos navios cargueiros.

Esqueci de dizer que nesses condomínios modernos, de onde estou de mudança, as paredes cada vez mais finas realmente têm ouvidos. Nas madrugadas, pelas noites insones, é comum escutar o espirro do vizinho ao lado, o choro de um bebê, a descarga e, não raro, os arroubos e gemidos de um ou outro casal mais afoito. Neste caso, diríamos tratar-se de um som inspirador e motivacional. Nunca me queixei desses e de outros barulhos. Antes da pandemia, quantas vezes não dormi embalado pelas festas que, driblando as regras condominiais, varavam a madrugada. No entanto, decidi escrever esta singela crônica ao acordar madrugada dessas, sem ouvir um pio, um único som.

Aguço os ouvidos daqui, apuro dali, e nada. Nem o gotejar de uma torneira mal fechada, nem o ranger de uma janela ao vento, nem o acelerar de um carro ou de uma moto na rua. Confesso que mais uma vez me assustei com esse silêncio, neste caso, quase ensurdecedor. Nessas horas, viro e reviro na cama e acabo na sala, com um livro nas mãos – pelo menos, tem o barulho da mudança de páginas – ou com a tevê ligada. O “Corujão” mostra um desses dráculas bem mequetrefe, mas eu não ligo, não. Segundos depois já estou cochilando, ouvindo ao longe o doce uivo do vampiro!

Manoel Dorneles

2 comentários

  1. Sou o tipo oposto, que implica com a música alta dos vizinhos. De manhã e no fim da tarde, adoro ouvir a “conversa” das araras e de outros pássaros, que vem comer as frutas do meu quintal, e os latidos dos meus cachorros, implicando com quem passa na calçada. Para dormir, só com o silêncio absoluto. Ainda bem que moro em Palmas, no Tocantins, onde isso ainda é possível… quando os vizinhos não fazem festa.

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